Skip to content

Figo na calda

Texto premiado Lei Almir Blanc Itamonte – MG dez/19

O Natal sempre chegou pelo tacho de cobre fervendo na cozinha e seu aroma recendendo a casa, muito antes de enfeites e propagandas com os Jingle Bells eternos, que se acabavam assim que terminado o período natalino. Até minha avó não se lembrar mais, de jeito nenhum, do longo do processo do doce, foi pelo olfato que eu percebia a festa iminente. 

É incoerente comemorar com tanto consumo o nascimento de quem veio cumprir o céu prometido sem nada possuir. Por isso, a ilusão de eternidade no brilho excessivo das luzes nas vitrines não me convida para nada.  O perene do Natal é a música que ele evoca. 

Não sei mais há quantos natais permanece a lembrança de um coral passando por mim. Eu era criança e assisti extasiada aquela harmonia de vozes anunciando que um anjo proclamou o primeiro Natal, e seguiam cantando pelas tortas ruas da cidade, convidando os triunfantes alegres a irem ao berço e olharem admirados a Sua humildade para aprendê-la. 

Hoje, escutei um coro que passava pela minha sacada. Abri a porta e pensei que ninguém podia ficar de fora daquele convite, então aceitei-o, já que gememos todos um triste exílio e dor de alguma maneira. Deixei a abastança da mesa destroçada de peru, com os guardanapos sujos de gordura e batom e os talheres escorrendo uma calda espessa de um doce, que nem de longe me lembra o da vó. Abandonei as pessoas na sala desembrulhando caixas e papéis e laços e vozes e risos, desafinando com o sentimento que eu queria ali. 

Saí do beco escuro e subi a ladeira central da cidade, atraída pelo som. Alcancei dos anjos a harmonia e engrossei com eles as tantas voltas que apenas um ó pode dar na partitura.  E celebrei quem quis nascer nosso irmão, embora o mundo pecador errante continuasse sendo. Não era só a minha, mas àquela hora todas as almas gozavam nova esperança, e a nossa fraqueza, que o Menino nascido no feno bem conhece, transfigurava-se numa força súbita que rompia o peito em cânticos fazendo-os chegar até longe, muito longe nas planícies do campo. Desci a última ladeira, mas continuava acima dos tormentos mil e das angústias do viver, numa suspensão de ordem, no mínimo, indizível: Aleluia

Com as ruas da cidade todas percorridas, voltei para a casa leve como a palha da manjedoura do cenário que me veio pelo vento. Meu único presente! Cheguei surpreendida pelo silêncio de todos que já dormiam. Ainda suspensa, fui ajuntar o lixo do Natal deles, vocalizando baixinho o som redentor da minha noite feliz, com uma saudosa e doce canção, tal como o figo na calda, da minha vó.

E:\COMUD SABER\FOTOS\artigos\figo em calda 2unripe-figs-4560921_1920.jpg

Gisele é autora de dois livros muito bons que estão disponíveis na Amazon e nós da Comud indicamos: