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Clarice Lispector

Um toque de liberdade

Escolher as palavras certas que bastem para expressar a essência da escrita de Clarice Lispector e quem foi essa mulher que marcou a literatura é praticamente impossível. 

Cronista e jornalista, autora de romances, contos, ensaios e livros infantis, a escritora nascida na Ucrânia e que se mudou ao Brasil aos dois anos de idade, se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais com sua linguagem poética e fora do padrão. Tornou-se um importante nome do movimento modernista e da literatura brasileira, como uma das fundadoras do estilo intimista no Brasil e considerada a maior escritora judia desde Franz Kafka.

Já havia escutado muito sobre essa mulher. 

Mas a primeira vez de fato em que tive contato com alguma obra dela foi em uma aula de literatura, em que a professora leu a crônica “Medo da Eternidade” (compilada juntamente com outras crônicas no livro “A descoberta do mundo”). 

Essa crônica traz uma reflexão sobre um dos maiores medos humanos – a eternidade. 

É narrada através do ponto de vista de uma criança, que tem contato pela primeira vez com um “chicle”, uma bala que não se acaba nunca. 

A narrativa descreve seus pensamentos e sentimentos, nos mostrando como essa menina se sente pequena e aflita diante da ideia de eternidade ou infinito.

Penso que a finita compreensão que nossa limitada mente humana possui faz com que muitas vezes tenhamos um sentimento de incapacidade de lidar com algo de uma magnitude tão grande – como no caso da própria personagem. 

Por isso, precisamos de uma comparação que torne aquilo tangível e de fácil compreensão. É justamente dessa forma que a crônica aproxima a eternidade ao nosso cotidiano e nos faz refletir. 

Enquanto a professora lia, eu só conseguia pensar: 

‘como essa escritora conseguiu trazer uma reflexão sobre um mistério tão grande com uma alusão tão simples e banal, em pouquíssimas linhas?’

Encantado, quis saber mais sobre a escritora. 

Li então um de seus livros mais conhecidos, “A Hora da Estrela”, o último publicado antes de sua morte. Particularmente, eu adoro o conceito de como Clarice assume o papel de um falso autor criado por ela – Rodrigo S. M.. 

Nesse livro, observo um dos meus traços favoritos (e um dos mais singulares) de suas obras: o processo metalinguístico – ela escreveu sobre escrever. Esse livro é, acima de tudo, uma reflexão e desabafo sobre o exercício da escrita, sua complexidade e o papel do escritor, assim como todas as suas limitações e angústias. Rodrigo S. M. diz no começo do romance: “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado…”.

 O que torna o livro especial é a forma como foram abordados assuntos como sentimentos de existência e morte e a relação entre os personagens. E por mais que fosse de difícil compreensão, a escolha de palavras e a forma como o texto foi construído me manteve preso à narrativa do início ao fim.

Seu estilo é inconfundível. 

Além desses livros, posso dizer que outros como “Paixão segundo G.H”, “Laços de Família” (uma coletânea de contos), e “Perto do coração selvagem”, são essenciais para entender quem foi Clarice Lispector e observar esses traços característicos de sua escrita. 

Em suas obras, aborda temas cotidianos e banalidades de uma forma única, com a concepção de personagens com enorme profundidade psicológica. 

É isso que caracteriza seu estilo intimista: por meio de recursos como análises psicológicas e monólogos internos, imerge nas mais profundas regiões da mente das personagens e nos apresenta na trama seus conflitos internos. 

Uma das características mais notáveis em diversas obras são os processos de epifania que as personagens passam – uma espécie de sentimento que expressa uma súbita sensação de compreensão da essência de algo, geralmente alguma verdade sobre si mesmo ou sobre o mundo. 

O próprio nome do livro “A Hora da Estrela” foi baseado no processo epifânico da protagonista. 

Ela “escolheu a literatura como bússola em sua busca pela essência humana” e é sua incrível capacidade de dizer sobre o indizível e explorar a condição humana em toda sua fragilidade e complexidade que faz dela uma escritora excepcional. 

A forma como leva o leitor a se envolver nas histórias, independentemente do tamanho delas, criando uma conexão e empatia pelas personagens, além da singular construção do texto, é o que desperta sentimentos e faz com que os leitores se identifiquem com os delírios e epifanias. 

Mais do que Liberdade na escrita

Enquanto autora, buscava mais do que liberdade em sua escrita “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”

Isso é visível tanto no próprio estilo intimista que se popularizou a partir de sua escrita, quanto na forma como trabalhou na construção desses textos, com independência estética e semântica. 

Suas obras não se enquadram em padrões, transcendem o espaço-tempo e dificilmente possuem um começo, meio e fim bem definidos. 

Há de se ter coragem para ler seus livros, pois sua escrita é instigante e intensa, para se dizer o mínimo. De fato, “não se lê Clarice impunemente”. 

A inspiração de uma escritora RESUMIDA

O que levo comigo todos os dias é a admiração por essa mulher forte. Clarice Lispector não quis apenas tocar nossas almas e transformar nossa maneira de ver o mundo, mas também de ser e estar no mundo.  Por esses e outros motivos, a escritora é um marco na história e seus livros continuam entre os mais lidos no país.

 “Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo”

  • Clarice Lispector

Link da crônica: https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/5889/medo-da-eternidade 

Ouçam alguns textos maravilhosos de Clarice:

Se eu fosse Eu com Aracy Balabarian

Se eu Fosse Eu – Clarice Lispector recitado por Aracy Balabanian – YouTube

Depois de uma tarde com Maria Bethania

Depois De Uma Tarde | Clarice Lispector (por Maria Bethânia) – YouTube

Conheçam um pouco de Clarice com a TV Cultura, maravilhoso programa.

Clarice Lispector – 100 Anos | Especial – YouTube

Imagem da capa: O cotidiano espetacular de Clarice Lispector | Estante Virtual Blog